Num excelente Tratado sobre a paz interior, o Padre Ambrósio de Lombez diz que toda
a nossa piedade só deve tender a nos unir a Deus pelo conhecimento, e
pelo amor, a fazê-lO reinar em nós pela nossa dependência absoluta e
contínua, por uma fiel correspondência ao Seu atrativo interior e a
todos os Seus movimentos, enquanto aguardamos que Ele nos faça reinar
conSigo na Sua glória.
Ora, sem a paz interior não podemos possuir todas essas vantagens
senão imperfeitamente. A perturbação interrompe as nossas meditações;
então a nossa alma, enfraquecida, só se eleva a Deus com esforço, e os
violentos abalos que ela sofre alteram muito em nós a tranqüilidade e a
solidez do Seu reinado.
O nosso coração é sempre o trono dEle, porém um trono vacilante,
ameaçada de ruína próxima; é a Sua sede, mas uma sede mal segura, onde
Ele não pode achar o repouso. Por isto o profeta diz que Deus habita na
paz: Factus est in pace locus ejus (SI 75, v. 2). E continuando
diz ainda o mesmo Padre que não é que Ele não habite também na alma do
justo agitado; mas está nela como um estranho, porque a agitação e a
perturbação que ela sofre anuncia que a permanência dEle nela será de
pouca duração. Daí fácil é concluir quão excelente e necessária é essa
paz da alma, e como se deve banir a agitação e a perturbação que os
escrúpulos nela introduzem.
1º. A paz interior dispõe-nos para as comunicações divinas, e ao mesmo tempo dispõe Deus a
no-las conceder,
pois Ele gosta de falar à alma na calma, na solidão, na liberdade.
Então, Sua voz harmoniosa faz-se ouvir melhor, a Sua graça opera,
ilumina, inflama, revolve e conduz como quer. Mas, se a perturbação
forma como que uma nuvem espessa que nos furta uma parte dessa luz
celeste, se o ruído confuso das agitações e das perturbações interiores
impede de ouvir a voz do Espírito divino, então a Sua ação é
neutralizada, e a nossa alma, por sua vez, é privada desses preciosos
favores que tanto a ajudariam no cumprimento do bem.
2º. Como, então, discernirmos os movimentes que Deus opera em nós daqueles que não vêm dEle?
Só na paz é que a alma pode fazê-lo, porque então está recolhida,
atenta, e no ponto de vista verdadeiro para esse discernimento. Ao passo
que, quando, deixamos entrar a dissipação, as angústias, a perturbação
que o espírito de malícia nela entretém, é impossível ser bem sucedido
nisso. Oh! diz o P. Lombez, quantos escrúpulos eliminados, quantas
ilusões dissipadas, quantas falsas devoções retificadas, se nunca
saíssemos dessa paz que nos leva a Deus sem ruído e sem perturbação, e,
ao menos, se tivéssemos por suspeito tudo o que pode alterar a doçura
dela!
3º. De que
socorro não é ainda a paz interior para lutarmos com vantagem contra o
inimigo da salvação e triunfarmos das tentações! Quando
se vela no interior da casa, quando se tem luz, quando se está forte
armado, não se teme a surpresa do inimigo; assim também, quando a alma
está recolhida, atenta sobre o seu interior, quando se possui, quando
está esclarecida pelas luzes do Espírito Santo, da Sagrada Escritura e
dos prudentes avisos do diretor, quando empunha as armas da salvação,
esse gládio de que o arcanjo se serviu contra Lúcifer, isto é, a oração,
não pode a alma ser surpreendida pelo inimigo, nem vencida pela
tentação. Ao contrário, a perturbação, lançando em nós a confusão, como
no meio de um exército em desordem, desconcerta-nos, abre as portas ao
inimigo, faz-nos esquecer as armas, e então somos fáceis de vencer. O
grande segredo, nos perigos em geral, e nestes em particular, é
possuir-se.
4º. Mas é
pela calma da alma que podemos, sobretudo fazer progressos no
conhecimento de nós mesmos, conhecimento este indispensável para
progredirmos na humildade e na abnegação de nós mesmos.
Ora, este estudo não pode fazer-se senão ao favor da paz da alma: numa
água tranqüila e clara distinguem-se os mais pequenos grãos de areia; e
na alma tranqüila percebem-se também as mais leves faltas. Então nos
vemos tais quais somos, conhecemo-nos e desprezamo-nos, porquanto
conhecer-se e desprezar-se são duas coisas inseparáveis: dai nasce à
humildade, fundamento de todo edifício interior.
5º. Outra vantagem bem preciosa, dessa paz interior é a facilidade que dela retiramos, para nos recolhermos.
Sem dúvida, a presença de Deus, a atenção à oração, os pensamentos
graves e sérios contribuem poderosamente para nos recolhermos, mas a paz
da alma é para isto um meio mais direto e mais eficaz. Quem diz paz;
calma, tranqüilidade interior, diz recolhimento; porquanto, se é verdade
que a dissipação provém do espírito e do coração, só da paz da alma se
pode esperar o recolhimento.
6º. Digamos,
enfim, que ela produz nos nossos corações delícias inexprimíveis, que
ela nos desgosta dos bens sensíveis e dos prazeres insulsos deste mundo,
para nos fazer degustar as coisas espirituais e celestes; que nos faz
saborear as doçuras que se respiram no serviço de Deus, nos dá uma
conduta uniforme, doce, modesta, tranqüila, ingênua, que faz sentir o
encanto da virtude aos homens que estão mais distanciados dela, os leva a
amá-la a honrar a. piedade, a respeitar a religião e a glorificar a
Deus.
A paz da alma é, pois, algo de inteiramente divino; é como que a alma
da piedade, o manancial das graças e das consolações, a felicidade
desta vida o título mais seguro às predileções de Jesus Cristo que diz: “Felizes os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus”.
É um meio poderoso de obter a paz futura, pois ela firma em nós o Reino
de Deus, dispõe para as comunicações divinas, favorece o discernimento
dos movimentos sobrenaturais, repele as tentações, ajuda-nos a nos
reconhecermos, dá-nos a simplicidade, secunda o recolhimento, enche-nos
enfim de inefáveis doçuras, de merecimentos e de bens.
Se tais são as vantagens e a excelência dessa paz, não é de admirar
que o demônio se encarnice em perturbá-la e em destruí-la em nós, e,
pelo contrário, de admirar seria que não estivéssemos prontos a superar
tudo para obtê-la e possuí-la.